“Toda sombra nasce da luz”: elementos cavaleirescos em Shadow of the Colossus - Marcos Jorge dos Santos Pinheiro

 Marcos Jorge dos Santos Pinheiro

Graduando em História na Universidade Federal do Maranhão. E-mail: marcosjpinheiro@outlook.com


O fenômeno do jogo

A estruturação deste curto trabalho dá-se em torno das reapropriações referentes aos usos da ordem cavaleiresca presentes no jogo Shadow of the Colossus (SotC), dirigido pelo projetista japonês Fumito Ueda. Antes, situar-se-á o jogo como um fenômeno que, ainda que compartilhadíssimo, não é anistórico.


O ato de jogar é comum a várias épocas e civilizações – e até a outros animais –, e ressalte-se que sua forma de exteriorização, em cada sociedade e tempo, se faz de uma maneira historicizável. Mutatis mutandis, o homem sempre procurou atividades lúdicas para seu autoentretenimento. Enfim, “jogo é aqui tomado como fenômeno cultural e não biológico, e é estudado em uma perspectiva histórica, não propriamente científica em sentido restrito” (HUIZINGA, 2000, p. 3).


Apesar da “complexidade lúdica” presente no jogo, é nítido que, sendo uma atividade compartilhada por seres racionais ou não, a lógica do jogo é simples e compreensível para praticamente todos. Ainda que não se compreenda, por variados motivos, as dificuldades pertencentes a cada um, ou mesmo a validade de sua existência, é impossível negá-lo como fato social. Enquanto há homem (e não só), há jogo (HUIZINGA, 2000, p. 7). É necessário ressaltar que o jogo não se apetece somente com o riso e com a descontração, o que seria um reducionismo infante e um tanto descabido. Em nosso tempo, podemos ressaltar não somente esportes clássicos (futebol, vôlei, handebol etc.) que requerem concentração, seriedade e comprometimento elevadíssimos, mas inclusive a modalidade eSports, não tão antiga, mas com poucos anos de popularização em um sentido macro, de escala global, que, a despeito da inicial estranheza de jogos eletrônicos, em geral voltados ao divertimento pessoal, terem se incrementado continuadamente, inclusive movimentando milhões de dólares, asseguraram-se como uma modalidade esportiva tão séria e profissional como os esportes “comuns”. Inclusive, mesmo crianças em seus jogos costumam levá-los com uma seriedade surpreendente, o que relega aos jogos uma categoria distinta da comicidade (HUIZINGA, 2000, p. 8).


Para Johan Huizinga (2000, p. 7), deve levar-se em conta as suas significações internas recepcionadas pelos próprios jogadores, de forma que,


se verificarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa “imaginação” da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e dessa “imaginação”. Observaremos a ação destas no próprio jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida.


Opta-se, aqui, por Huizinga pois muitos outros clássicos, ainda que possam nortear o estudo, não designam bem o presente e muito singelo objetivo. Assim, concordando com Pinheiro, Puhl e Branco (2006, p. 3-4), 


por mais úteis que sejam para compreender a “natureza” dos jogos, as categorias propostas por Caillois (Agon, Ilinx, Mimicry e Alea) se mostram demasiado genéricas e não conseguem dar conta da riqueza dos textos dos jogos eletrônicos. Não se quer dizer com isso que os games proponham outro tipo de jogos que não aqueles tratados por Caillois, senão que encontramos muitos deles que participam da mesma categoria e que são, assim mesmo, completamente diversos entre si.


Prosseguindo, vale a pena atermo-nos a certos detalhes deste jogo se quisermos ser aptos à compreensão de como seus dados culturais ressignificam o Medievo. Originalmente lançado em 2005 pelo console PlayStation 2, possui poucas diferenças para a atual versão, disponibilizada para PlayStation 4. SotC, ainda que longe de ser uma simples transposição medieval, ambienta-se em clima, senão medieval, notavelmente referente às sociedades tradicionais.


Sobre reminiscências medievais e medievalidades 

Não é fato novo afirmar que a Cavalaria medieval, depósito de tantos aplicados estudos, resultou em incessantes reapropriações no Imaginário Ocidental, e tampouco cessa de fazer-se atual nas variadas mídias sociais. Tendo isso em mente, o que busco é compreender como esta instituição e alguns de seus valores foram “reapropriados” em Shadow of the Colossus. Para tal, imprescinde fazer uso das possibilidades interpretativas abertas tanto pelo conceito de “reminiscências medievais” quanto pela “medievalidade”, tendo em vista que ambas auxiliam no propósito em voga.


Toma-se, neste trabalho, a reminiscência medieval como uma releitura, uma rememoração de um fenômeno típico do Medievo, como as constantes tentativas de se manter viva uma tradição de fundo medieval, como culinária ou costumeira.


Outrossim, a medievalidade é melhor explicada quando exemplificada, pois caracteriza-se como uma espécie de uso dos topoi medievais na contemporaneidade. Os clichês de uma Idade Média imaginada são usados, assim, como ponto de referência estereotipados principalmente em trabalhos típicos da Indústria Cultural (MACEDO apud SILVA, p. 199) (mas não só), como literatura fantasiosa, jogos de RPG (como D&D) e filmes.


Indubitavelmente, apesar das reminiscências medievais serem úteis (ver-se-á mais ao fim do trabalho), o segundo conceito explicitado ancila os objetivos-guias do trabalho, pois há menos ilusão que gáudio em crer que um jogo publicado pela Sony possui a nobre meta de manter viva certa tradição “medieval-tradicional”, senão que utiliza aspectos “clichês” medievais para ambientar sua trama.


Desnaturalizando o processo histórico como algo natural e a priori, aventa Roger Chartier (1990, p. 62):


O texto, literário ou documental, não pode nunca anular-se como texto, ou seja, como um sistema construído consoante categorias, esquemas de percepção e de apreciação, regras de funcionamento, que remetem para as próprias condições de produção. A relação do texto com o real [...] constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais próprios de cada situação de escrita.


Adaptando sua abordagem primária de textos para os jogos, fica nítido que estes são feitos dentro de um contexto, com referências tais úteis para a compreensão das releituras que provoca – até indiretamente – acerca de temas comuns à temporalidade medieval.


Shadow of the Colossus entre a sombra e o dever

Shadow of the Colossus inicia-se com uma abertura longa, porém fria. Se o jogo já possui uma aparente carga anêmica, a abertura é a propedêutica que o simboliza, até mesmo porque, sem assisti-la, a história torna-se ainda mais confusa. Um cavaleiro, montado em sua égua negra – que chega a camuflar-se no breu –, carrega à frente uma mulher moribunda para um lugar distante, apartado. A opening passa uma ideia longínqua, arrastada, demorada. E não foi produzida à mercê de nada. Ueda mesmo afirmara que os trailers de filmes possuem grande impacto na sua produção de games. Não os filmes em si, mas seus previews, de modo que conseguia, apenas com eles, reescrever todo o enredo em sua mente (04:10). Evade-se das personagens, sendo praticamente impossível captar um frame que foca simultaneamente na égua e nos que nela montam.


O cavaleiro chama-se Wander (que pode ser tanto seu nome próprio quanto o correspondente inglês para “perambular”), a moça, Mono e a “fiel companheira” dele, que perpassa com Wander por toda sua trajetória, é a égua Agro. Descobrimos, ao fim dessa cena, que Wander viaja a uma ilha remota, abandonada pelos homens, conhecida por Terras Proibidas. Seu objetivo lá é a salvação de Mono, pois nesta ilha existe uma entidade cósmica, Dormin, a quem Wander clama por ajuda, para que ele traga o sopro de vida de volta ao corpo dela. Estamos então no Santuário de Adoração, onde Wander depõe Mono em um altar, desalmada, e comunica-se com Dormin, que, sabe-se, é uma entidade com o poder de ressuscitar humanos. Vendo que Wander carrega consigo a Espada Antiga, que o capacitava para sua tarefa, Dormin acorda com o pedinte que seria necessário que destruísse ao todo 16 colossos, seres gigantescos e monstruosos, para que ele retornasse Mono à vida. 


O jogo representa ostensivamente (na narrativa e na imagem), em vários aspectos, a nossa miudeza perante o mundo que nos cerca. A ilha até contém ambientes cavernosos e florestais cerceadores, mas, num todo, vagamos por horas com Agro de forma que a câmera do jogo em si foca nas planícies vastas e formações rochosas titânicas. Passamos por desertos, campos verdejantes, vales, pântanos secos, pouco importa: Wander e Agro são sempre um ponto em meio à vastidão das Terras Proibidas. Não só a parte natural nos insere na nossa própria pequenez, mas inclusive os inimigos de Wander: os colossos costumam ser demasiadamente avantajados, de forma que, ao se aproximar deles, fica difícil não só enxergar detalhes de Wander, mas até ele próprio. Seu tamanho ante seus inimigos é de uma diferença gritante.


Ao fim da saga pela salvação de sua (provável) amada, Wander derrota todos os colossos e, sem saber das consequências, acaba sendo possuído por sombras negras (as mesmas que o invadiam a cada colosso derrotado), que se revelam ser o espírito de Dormin! que havia sido selado nas 16 estátuas, e, agora, apossa-se de Wander. Homens que perseguiam Wander para impedi-lo de cumprir sua missão chegam ao local no momento do ritual macabro e seu líder, Lorde Emon (narrador do jogo), que possui uma animosidade com Dormin, sela-o novamente jogando a Espada em uma fonte d’água, que o atrai (ainda em em posse de Wander), e, por fim, quebra a ponte de entrada da ilha. Durante este ato, Mono acorda, e após o conflito cessar, encontra na fonte d’água Wander transformado em um bebê com cornos pretos. Mono, com Agro, aparentemente cuidará dele no Jardim Secreto acima do Santuário de Adoração.


Uma vida pela outra – esboço de ética cortesã?

A entidade cósmica, Dormin, presentifica no enredo o rei Nimrod, personagem da mitologia judaico-cristã que desafiou Deus e ambicionou a construção de uma torre que alcançasse os céus, provando seu poder. Deus, frente ao desafio, amaldiçoou os homens com variadas línguas e os dispersa pelo mundo, impedindo sua unidade. Aqui, temos o primeiro simbolismo do jogo, já que o próprio Dormin, ser de grande poder (perceptível pela maneira como amedronta Lorde Emon e seus cavaleiros), foi segregado em 16 partes e impedido de manifestar-se pleno.


Além da reapropriação deste mito importante para a Cristandade, esta tarefa de Wander não deixa de referenciar-se, em primeira vista, com as tarefas hercúleas, pois a cada colosso derrotado, ele, levado desacordado de volta ao templo, logo receberia a próxima missão, em si um pouco maior que a de Hércules, ainda que tão mortal quanto.


Mas a medievalidade cavaleiresca que ressona na busca solitária de Wander assemelha-se principalmente às tarefas presentes nas gestas medievais, nas quais cavaleiros devem impor-se às missões mais corajosas que um homem poderia passar para o bem das pessoas com quem se importa, inclusive, dando sua vida para isso. 


Para Huizinga (2013, p. 99), “como ideal de vida bela, a concepção cavaleiresca tem aspectos peculiares. É um ideal essencialmente estético, feito de fantasias coloridas e sentimentos elevados, que também almeja ser um ideal ético: o pensamento medieval só pode conferir nobreza a um ideal de vida se o puder vincular à piedade e à virtude”. Este é o ideal tradicional de um cavaleiro em sentido mais idílico, cuja única função é honrar Deus, a Igreja e seu senhor. Ainda, afirma que “peculiar à moral cavaleiresca, e tão estereotipada e abstrata, é a noção de que a verdadeira nobreza provém apenas da virtude e de que no fundo todos os homens são iguais. [...] Mas essas duas ideias eram lugares-comuns na própria literatura cortesã” (2013, p. 91). 


São Bernardo de Claraval, em seu Do Louvor da Nova Milícia e dos Soldados do Templo (1130), critica um modus operandi que pouco se preocupa com as reais funções telúricas do cavaleiro, ao defender que


é necessário que o prudente e valoroso cavaleiro esteja muito seguro de si para burlar os golpes do contrário, que tenha expedicidade e habilidade em mover-se para todos os lados, que esteja bem preparado para carregar sobre o inimigo. Vós fazeis tudo ao contrário: levais, à maneira das damas, grandes cabeleiras, que vos estorva ver em redor; embaraçais as pernas com os vossos largos vestidos, envolveis os braços e as delicadas mãos com grandes véus. Mas sobretudo isto, o que deve assustar mais a consciência dos combatentes é que ordinariamente empreende-se uma guerra muito perigosa por motivos muito ligeiros e de nenhuma importância. E, efectivamente, o que suscita os combates e as querelas entre vós não é, a maioria das vezes, senão um movimento de cólera pouco razoável, um certo apetite de vanglória ou o avaro desejo de possuir um pedaço de terra. Com semelhantes causas não há nenhuma segurança em matar a um homem ou em ser morto por ele.


Em seu tratado sobre a cavalaria, o Livro da Ordem de Cavalaria (c. 1279-1283), Ramon Llull (1972, p. 181) alude ao dever máximo daquele que deseja adentrar à ordem, na qual o


ofício de cavaleiro é manter e defender o seu senhor terrenal, pois nem rei, nem príncipe, nem alto barão poderão, sem ajuda, manter a justiça entre os seus vassalos. Por isto, se o povo ou algum homem se opõe aos mandamentos do rei ou príncipe, devem os cavaleiros ajudar o seu senhor, que, por si só, é um homem como os demais. E assim, é mau cavaleiro aquele que mais ajuda o povo do que o seu senhor, ou que quer fazer-se dono e tirar os estados do seu senhor, não cumprindo com o ofício pelo qual é chamado cavaleiro. [...] Ofício de Cavalaria é guardar a terra, pois por temor dos cavaleiros não se atrevem as gentes a destruí-la nem os reis e príncipes a invadir [as terras] uns dos outros. Mas o cavaleiro malvado que não ajuda o seu senhor natural e terrenal contra outro príncipe é cavaleiro sem ofício.


Destoante do sentimento religioso e serviçal ao suserano que frutifica em uma vida constrita, Huizinga (2013, p. 116) também traz a cavalaria idealizada ante o feminino, que ficou marcada pela figura do cavaleiro cortês, do fin’amors, no qual


o cavaleiro e a amada, o herói em nome do amor, são o motivo romântico mais primário e imutável que em toda parte renasce, e sempre renascerá. É a transformação mais imediata do impulso sensual em uma abnegação ética ou quase ética. Ele nasce diretamente da necessidade do homem de demonstrar a sua coragem para conquistar uma mulher, para correr perigos e ser forte, sofrer e sangrar; a aspiração de todo jovem de dezesseis anos. Expressar e satisfazer esse desejo, algo que parece inalcançável, é substituído e elevado pelo ato heroico praticado por amor. Com isso, a morte passa a ser imediatamente uma alternativa para tornar plena a satisfação que, por assim dizer, fica garantida de ambos os lados. [...]O feito heroico deve constituir-se na libertação ou no resgate da própria mulher do perigo mais ameaçador. [...] Primeiro é o próprio sujeito que quer sofrer pela mulher; mas logo junta-se a ele o desejo de resgatar a pessoa desejada do sofrimento.


Nesta vertente, fica nítido como o dever de Wander, ainda que a ele se referenciando, menos segue que inverte o modelo de cavaleiro clássico, pois ele ignora as virtudes cristãs lulianas e bernardinas que visam sempre às ações em prol do Senhor e da Igreja (pode-se adaptá-la para uma Instituição religiosa genérica para SotC). Não obstante, em contramão, ele invoca a cortesia para com a sua dama (por alto, uma alteridade do Senhor) e a ela dedica sua vida e esforços objetivando seu bem-querer. Nas poesias trovadorescas, o cavaleiro é comumente de grau social menor que o da sua amada, e a ela dedica seus versos, ações e coração buscando sua mínima comoção.


A questão inovadora deste ideal de amor cortês é o cortejo desinteressado, pois a união dos amantes – isto é, caso ocorra – é secundária na trama. O que se enfatiza é o esforço incomensurável dedicado à busca não só deste amor, mas do bem-estar da amada. É justamente o que se dá em SotC, já que, ao cabo de esforços infindáveis, Wander não possui sequer a chance de confortá-la ou manter-se com ela, já que é transformado em um bebê que certamente nem possui consciência do que ocorre ao seu redor. O que importou, ao fim, foi a salvação de Mono, ainda que causasse uma desordem cósmica com a conturbação do aprisionamento e libertação de Dormin.


Não deixa de ser relevante trazer à tona reminiscências medievais latentes em SotC. A primeira é sobre a grande empresa perpetrada por Wander, inversamente proporcional à sua pequenez ante o mundo ao seu redor, e o game não falha em mostrá-la ante a paisagem erma quando ele corre montado em Agro, para não falar da sua insignificância em relação aos inimigos, que chegam a até 170 metros! Esta desimportância lembremos que seu nome pode significar nada mais que um viajante rememora não só a autocomiseração (coito amoroso) do cavaleiro pela dama, mas lembra, em maior grau, de que “o anonimato do cavaleiro é uma figura fictícia permanente; ele se chama ‘le blanc chevalier’, ‘le chevalier mesconmu’, ‘le chevalier à la pélerine ou então ele se apresenta como um herói do romance e se chama cavaleiro do cisne, ou porta as armas de Lancelote, Tristão ou Palamedes” (HUIZINGA, 2013, p. 126). O próprio Wander porta uma arma famosa, a Espada Antiga, que é um dos poucos elementos do jogo que possuem um nome próprio.


Outro ponto interessante é a dramaticidade do enredo do game, ainda que com poucas informações cedidas ao interator. Esta dramática situação que ocorre no decorrer (matar seres colossais sem saber se o é moralmente correto ou não) e principalmente, ao fim do jogo (quando é possuído por Dormin, podendo tornar-se talvez algo pior que os colossos que derrotou), lembra os elementos dramáticos que permearam a Baixa Idade Média.


A despeito de ser um tempo de guerras infindáveis, as camadas abastadas buscavam alguma redenção sentimental nos teatros sociais da vida cultural. Os próprios jogos/esportes (muito distantes de um game do séc. XXI, de fato, mas portadores de semelhanças) também eram permeados desta dramaticidade pseudo-erótica. 


Segundo Huizinga (2013, p. 122), os cavaleiros costumavam carregar véus ou vestido das amadas nos torneios para sentirem-lhe seus cheiros, e elas, no fervor da luta, jogavam-lhe presentes. Ainda com o neerlandês, nota-se que a névoa de melancolia, o cavalo preto, as cores mórbidas (roxo, preto, branco), as aventuras oníricas (contra gigantes, por exemplo) são dados notáveis no enredo dos jogos medievais (2013, p. 125-6).


É sintomático, note-se, que Wander não se desune de sua égua negra, que suas vestes são em tons de marrom e as de Mono – uma “donzela à lá Isolda” – são puramente brancas, de muita sobriedade, e que derrotar mesmo o menor dos colossos é um empreendimento gigante se comparado à singeleza do protagonista.


Em vias de considerações finais

Fiz uso, neste breve trabalho, de um jogo que permanece atual (mesmo em um cenário em que rapidamente tudo torna-se obsoleto), para tentar demonstrar uma presentificação da Idade Média em nossa época, e como a Indústria Cultural renova suas representações sobre esta media tempestas


Por que escolhi um jogo somente, e logo um tão “direto” em sua história? Buscando ser pontual, abono rapidamente à ideia de Barbara W. Tuchman (1995, p. 27): tentando ser discípulo “do grama”, “desconfio da história aos quilos”, ao menos quando aplicada indistintamente a quaisquer pesquisas historiográficas.


Partindo-se do micro para o macro, é possível compreender um pouco mais sobriamente a (re)apropriação do Medievo nos jogos, não sem, obviamente, visar o diálogo com pesquisas mais aprofundadas e que versem sobre as distintas vertentes desse fenômeno nos mais variados games. Não à toa, esta última seção nomeia-se assim pois creio que, pelo caráter introdutório deste texto, nem se pode balizar uma conclusão ipso facto.


Se é verdade que cada época possui como afirmara Lucien Febvre, suas Grécia, Idade Média e Renascimento (apud FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 14), torna-se mister a função de promover leituras e compreensões dos produtos midiático-culturais que se reapropriam de elementos tipicamente medievais (por meio das supracitadas “medievalidades”; “reminiscências medievais”; etc.) em suas incontáveis obras. Tanto para compreendermos nosso tempo quanto o Medievo. Lembrando-me de Wander, julgo ser uma missão a qual não podemos dar-nos ao luxo de relegar.


Referências bibliográficas


Corpus documental

ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Sá da Costa Ed., 1972.

FUMITO UEDA INTERVIEW - Shadow of the Colossus and ICO Designer - Secrets Revealed. 2013. (12m32s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=G2svF-fV4VU>. Acesso em: 22 jul. 2020.

SÃO BERNARDO DE CLARAVAL. Do Louvor da Nova Milícia e dos Soldados do Templo. Disponível em: <https://lusophia.wordpress.com/2019/09/24/do-louvor-da-nova-milicia-e-dos-soldados-do-templo-por-sao-bernardo-de-claraval-1130/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

SIE. Shadow of the Colossus. Japão: JAPAN Studio, 2018.


Fontes secundárias
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2001.

HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. Cosac Naify: São Paulo, 2013.

PINHEIRO, C. M.; PUHL, P. R.; BRANCO, M. A. O COLOSSO É ENORME: A imagem na narrativa dos games. Novo Hamburgo, 2006.

SILVA, Ademir Luiz da. Cavaleiros, monges e sabres de luz: o imaginário medieval na saga Star wars. ArtCultura, Uberlândia, v. 16, n. 28, p. 195-210, jan-jun. 2014.

TUCHMAN, Barbara W. A prática da História. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1995.

Comentários

  1. Prezado Autor,
    Parabéns pelo seu texto. Contudo, gostaria que o senhor justificasse melhor a sua opção teórica, pois, ao trabalhar com a noção de reminiscência, o senhor criou uma contradição teórica, uma vez que os autores que trabalham no campo do medievalismo e, no seu caso em particular, creio que seja o campo do neomedievalismo, são contrário às discussões sobre reminiscências medievais ou qualquer teoria que seja coligada à noção de longa idade média. Assim, apesar de ter proposto uma reflexão bastante interessante sobre o game em si, sugiro que repense ou modifique a sua base teórica, como questão, por favor, explique a relação entre reminiscências medievais e a apropriação feita pelo game.
    Ainda à guisa de sugestão, sugiro que leia o livro abaixo.
    CLEMENTS, Pamela and ROBINSON, Carol. Neomedievalism in the media: essays on films, television, and electronic games. Lampeter: Edwin Mellen Press, 2012.

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    1. Caríssimo,
      Tudo bem? Agradeço a intervenção, questão e bibliografia trazidas, certamente tentarei acessá-la. Penso que, de fato, o conceito de reminiscência, se usado "puro e simples", acaba sendo nada mais que simplificação e defasagem para compreensão de fenômenos da contemporaneidade – ao menos na temática referente ao trabalho. Para ser sincero, nos primórdios da confecção do trabalho, esta via isolada parecia ser possível, já no decorrer, ficou nítido que manter-me somente nisto seria cortar da compreensão a complexidade e nuance do game, por isso mesmo o retirei do título e tentei diminuir seu uso no desenvolvimento. Enfim, há razão em ver a necessidade de revisão neste ponto, haja visto que, para games, realmente se torna inapropriado. Isto claro, quanto a sua questão, decerto que a estética do game (inimigos, ambientação etc.) trata-se não de ecos de uma longa duração, mas de usos de estereótipos típicos do tempo atual ante ao medievo. Obrigado pela crítica e sugestão. Abraço,

      Marcos

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  2. Prezado,
    Parabéns pelo trabalho. Faço coro à do Clínio acima. O conceito de reminiscência e de medievalidade parece ser contraproducente em relação à sua abordagem. Geralmente esses termos são associados com uma perspectiva mais "continuista", nos moldes da proposta do Professor Rivair Macedo e do Hilário Franco Júnior, tratando de heranças e permanências do medieval. Seu trabalho parece muito mais alinhado com a ideia de medievalismo e, talvez, como o Clínio pontuou, de neomedievalismo.

    Recomendo as seguintes leituras, fiz uma compilação do que me lembrei sobre textos introdutórios de medievalismo, neomedievalismo e medievalismo em games:
    KLINE, Daniel T. Participatory Medievalism, Role-Playing and Digital Gaming. The Cambridge Companion to Medievalism, p. 75-88, 2016.
    KLINE, Daniel T. Virtually Medieval: The Age of Kings Interprets the Middle Ages. Mass market medieval: Essays on the Middle Ages in popular culture, p. 154-70, 2007.
    KLINE, Daniel T. (Ed.). Digital gaming re-imagines the Middle Ages. Routledge, 2013.
    PITRUZZELLO. Systematizing Culture in Medievalism: Geography, Dynasty, Culture, and Imperialism in Crusader Kings: Deus Vult. In: Digital Gaming Re-imagines the Middle Ages. Routledge, 2013. p. 57-66.
    FEDORENKO, Gregory. The Portrayal of Medieval Warfare in Medieval: Total War and Medieval 2: Total War. In: Digital Gaming Re-imagines the Middle Ages. Routledge, 2013. p. 67-80.
    UTZ, Richard. “Past, Present and Neo.” Humanistic Perspectives in a Technological World. Georgia Institute of Technology, 2014.
    MATTHEWS, David. Introduction. In: Medievalism: A critical history. Boydell &Brewer Ltd, 2015.
    D'ARCENS, Louise. Introduction. In: The Cambridge companion to medievalism. Cambridge University Press, 2016.
    ROBINSON, C; CLEMENTS, P. “Living with Neomedievalism.” Studies in Medievalism XVIII, no. 18, 2009, pp. 55-75. www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt81w18.8.
    FITZPATRICK, K. “(Re)Producing (Neo)Medievalism.” Studies in Medievalism XIX, no. 19, July 2010, pp. 11–19. JSTOR, www.jstor.org/stable/10.7722/j.ctt14brsr8.3.
    COOTE, Lesley. A Short Essay about Neomedievalism. Studies in Medievalism XIX:Defining Neomedievalism (s) I, ed. K. Fugelso, p. 25-33, 2010.

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    1. Caríssimo,
      Tudo bem? Agradeço imensamente as sugestões bibliográficas, as procurarei, sem dúvida. De fato, entendo que a abordagem teórica abrange características destoantes do recorte temático em si, principalmente na noção de reminiscência, por causa dessa matiz que pende fortemente (ou totalmente) para uma ideia continuista, como você bem disse. Porém, penso que, ao menos a "medievalidade" – ainda que com justas críticas a seu uso –, com a distinção correta, possa ainda ser um recurso viável para tal tema, pois, especificando-a menos como herança viva e mais como uso dos lugares-comuns que nosso tempo carrega sobre uma ideia de medievo, a despeito de certa datação, acredito não está 100% esgotada, apesar de que fincar bases em uma abordagem teórica do medievalismo deva ser mais propício para este trabalho. Em tempo, agradeço seu comentário. Abraço,

      Marcos

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  3. Prezado Marcus Jorge, tudo bem?
    Fiquei curioso para saber se há alguma especie de releitura da religião nesses jogos. Penso, em uma releitura medieval, no sentido do culto popular.
    abraços,

    Leonardo Rocha Amorim.

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    1. Caríssimo,
      Tudo bem? Obrigado pela boa questão. Então, em Shadow, curiosamente, a questão religiosa é presente, mas bem latente. O jogo inspira-se em muitas questões mito-religiosas, como a história de Nimrod, que associa-se em vários pontos ao importante personagem Dormin, que, pelo que vemos, parece ter poderes assombrosamente divinos, mas, pelas personagens presentes no game, era visto como uma figura maligna, a ser rechaçada. É bem mais presente no jogo a especificidade do "profano" em detrimento de uma divindade cultuada, mesmo nos moldes medievais. Nesse sentido, poderíamos ver releituras religiosas no jogo mais com essas "leituras a contrapelo" (profano, em vez do sagrado) do que achar de fato núcleos referentes ao culto popular a um ou mais deuses. Agradeço o questionamento. Abraço,

      Marcos

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  4. Parabéns pelo texto. Sou fã do jogo, até mesmo joguei Ico e Last Guardian, mas nunca me atentei a essas reminiscências medievais em Shadow of the Colossus, para mim sempre o vi como um cavaleiro que caça gigantes. Realmente seu texto me fez ter outro olhar sobre esse clássico.

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    1. Caríssimo,
      Tudo bem? Agradeço muitíssimo sua satisfação com o trabalho. De fato, quando joguei ou presenciei estes jogos na minha infância (TLG mais recentemente, claro), ficava realmente maravilhado com a aventura de derrotar gigantes, escapar de inimigos e tudo o mais. Quando joguei novamente a versão remasterizada do Shadow, comecei a criar um olhar para estas hipóteses aventadas, percebendo que existia certa conexão de elementos trazidos no game com aspectos medievalizados, ainda que indiretamente. E, de fato: são clássicos realmente importantes e MUITO divertidos e interessantes, ainda mais com as inúmeras análises de teorias acerca do universo compartilhado! Muito obrigado pelo comentário. Abraço,

      Marcos

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  5. Victor Célio Vinícius Cunha Hermógenes1 de setembro de 2020 às 13:34

    Parabéns, fiquei curioso em saber se a forma com que a narrativa é desenvolvida termos medievais são utilizados como "feudo" ou cavaleiro, obrigado

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    1. Caríssimo,
      Tudo bem? Agradeço a questão. A priori, não temos tanta informação do modo de viver e se relacionar das personagens encontradas no game. Assim, o que podemos deduzir é que são comunidades tradicionais, que provavelmente cultuam divindades que desconhecemos. Em fato, o jogo não traz tais termos que nos permitam alegar que, de fato, é uma reapropriação direta do Medievo, sendo tão somente alguns componentes que possibilitem esta análise, como o fato de Wander carregar uma espada com poderes mágicos, montar em uma égua fiel, além de detalhes como troféus que o jogador pode desbloquear no game (para platiná-lo), que trazem o nome de "Cavaleiro" para a conquista, traindo o fato de que, ainda que não esteja ao nível de Galaaz, ele dedica-se à função cavaleiresca, ainda que não diretamente medieval, obviamente. Espero que tenha sanado a questão. Muito obrigado pela intervenção. Abraço,

      Marcos

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