Apropriação e [res]significação do passado normando pelos intelectuais do século XVIII - Renan Perozini Gomes Barrozo

Renan Perozini Gomes Barrozo

Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: renangomespb@gmail.com. 


Antes de destacar a produção relativa à Idade Média, em especial sobre os normandos, durante o século XVIII, cabe uma discussão a respeito do contexto social ao qual se inserem essas produções. É importante e necessário entender que a historiografia está articulada a cada período e a maneira como os indivíduos de cada momento estão relacionados com seus contextos. Não podemos pensar a produção historiográfica sem levar em conta os conflitos, as questões e os problemas levantados em cada época. 


Nesse sentido, no século XVIII emergem as discussões mais ferrenhas do período Iluminista, devendo-se à disputa política e social em efervescência nesse contexto histórico. Ao analisar a produção intelectual do período, é possível notar que o iluminismo e posteriormente o romantismo, possuem concepções diferentes de mundo compreendendo de maneiras distintas a Idade Média e mais do que isso, apropriam-se desse recorte constituído na renascença para inserir os anseios de seu tempo. As lutas travadas pelos intelectuais do século XVIII tinham relação com o sistema feudal, e as instituições que faziam de tudo para ainda se manterem em posição de poder. A relação possível entre os intelectuais do iluminismo e o sistema feudal era de ódio, devido ao contexto vivido pelos autores do século XVIII (OLIVEIRA, 1999).


Em um artigo a respeito da historiografia francesa do século XVIII e XIX, Terezinha de Oliveira destaca que existem três movimentos intelectuais ao longo do período. Os historiadores do século XVIII precisavam combater a ideia e os laços com a feudalidade que faziam parte do modelo social que seria derrubado pela Revolução. Os autores da Restauração precisavam fundamentar a nação pela Revolução e elaboraram um enfoque diferente para a época medieval, assim como os intelectuais do início do século XIX, que já não tinham esse laço de enfrentamento tão forte com o Antigo Regime e buscaram, na Idade Média, as bases para fundamentar a sociedade francesa moderna, incluindo nesse estudo, a busca pelas origens da França moderna inserindo o feudalismo, a realeza, a Igreja e a nobreza, instituições criticadas no início do século XVIII.


As diretrizes intelectuais do século XVIII não poderiam ser a sociedade feudal, devido a sua luta contra esse sistema, assim o século XVIII teria encontrado na antiguidade clássica os laços que fundamentariam a nova sociedade. Seu passado recente não poderia lhes dar o que buscavam, por isso, os autores do período se apropriaram de elementos presentes nas repúblicas clássicas e suas matrizes para a formação da sociedade francesa. A razão para isso é estabelecer um paralelo entre as repúblicas do passado e a sua razão e filosofia, em um modelo que seria estabelecido como governo, na sociedade do século XVIII.


Augustin Thierry ao comentar a respeito da produção do século anterior em um ensaio sobre a História da França destaca que “Tudo o que tinha produzido, na ordem política, a sucessão dos acontecimentos ocorridos na Gália desde a queda do Império Romano, cessa de existir para a Revolução Francesa” (THIERRY, 1833, p.179). Percebe-se que a produção intelectual da primeira metade do século XVIII, estava associada a um pensamento que valorizava a racionalidade, a filosofia e as explicações provenientes dessas duas bases teóricas, além disso, havia certo rancor em relação ao feudalismo e as instituições vistas e compreendidas como medievais, especialmente os adversários do Terceiro Estado na batalha política travada no cenário francês.


Para compreender a forma como parte dos intelectuais franceses pensavam a relação entre a Idade Média e os normandos e se apropriavam dessa relação, para criticar o Antigo Regime, faz-se necessário um destaque para o trabalho de Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu, um dos membros do movimento iluminista, autor de diversas obras que tecem críticas ao sistema feudal, à Igreja e à nobreza. Em uma de suas obras o autor faz correspondências anônimas em que lança suas críticas à sociedade em que vivia. Em uma das cartas, Montesquieu faz uma análise sobre a origem antiga das repúblicas, comparando a emergência delas na Europa, Ásia e África. O autor enfatiza o papel dos Gregos e da sua vontade de liberdade e ódio das monarquias que os mantiveram independentes, mesmo com os ataques dos reis persas. 


O amor à liberdade, o ódio dos reis, manteve a Grécia por muito tempo em independência e espalhou o governo republicano. As cidades gregas encontraram aliados na Ásia Menor: enviaram colônias para lá tão livres quanto "Eles, que serviram de muralha contra as empreitadas dos reis da Pérsia. Isso não é tudo: a Grécia povoou a Itália;" Itália Espanha e talvez Gália, acreditamos. (MONTESQUIEU, 2013, p.224.) 


Além disso, ele aproxima as Repúblicas Antigas aos povos da Gália, o que se tornará perceptível em outras obras como o Espírito das Leis. Ademais, é necessário ponderar a sua opinião, nessa carta, para os povos do norte. Montesquieu representará os habitantes do setentrião como indivíduos acostumados à liberdade e não sujeitos a seus líderes, que eram, em geral, chefes militares. Eles conquistaram as terras romanas e, posteriormente, não se sujeitaram à tentativa de domínio imposta pelos turcos.


Esses povos eram livres; e eles limitaram a autoridade de seus reis com tanta força que eram, propriamente, apenas chefes ou generais. Assim, esses reinos, embora fundados pela força, não sentiram o jugo do vencedor. Quando os povos da Ásia, como os turcos e os tártaros, fizeram conquistas, sujeitas à vontade de um, pensaram apenas em dar-lhe novos súditos e em estabelecer pelas armas sua violenta autoridade. (MONTESQUIEU, 2013.p.225)


Esses povos, na visão de Montesquieu, saíram de sua região de origem e causaram uma grande modificação no mundo romano, pilhando, praticando a pirataria e fundando reinos, diante da impossibilidade da sociedade romana de se proteger.


No entanto, uma infinidade de nações desconhecidas saiu do norte, espalhando-se como torrentes nas províncias romanas; e, encontrando tanta facilidade para fazer conquistas quanto para exercitar sua pirataria, eles desmembraram o império e fundaram reinos. (MONTESQUIEU, 2013.p.225)


Por estarem habituados a liberdade, os normandos limitavam o poder dos seus líderes. Ainda que seja uma concepção teórica para explicar uma sociedade, Montesquieu não deixa de projetar a noção de liberdade a essa discussão e atender os anseios a que o autor propunha, dentre tais, o conflito direto com o Antigo Regime.


Mas os povos do norte, livres em seus países, tomando as províncias romanas, não deram grande autoridade a seus líderes. Alguns desses povos, como os Vândalos na África, os Godos na Espanha, depuseram seus reis quando não ficaram satisfeitos com eles; e, entre outros, a autoridade do príncipe era limitada de mil maneiras diferentes: um grande número de senhores a compartilhava com ele. (MONTESQUIEU, 2013.p.225)


É interessante perceber que Montesquieu não leva em consideração a questão religiosa na composição social e política dos povos do norte, para ele, existe uma racionalidade baseada em uma questão natural e não sobrenatural. Anos depois, ele publica aquela que seria a sua principal obra, O Espírito das Leis e destaca uma série de questões articuladas aos diferentes tipos de governos em diversos locais. Para essa análise se torna interessante a Terceira Parte da obra, em especial, o segundo capítulo, que o autor fala sobre a relação entre o clima e as leis. O Segundo capítulo do 14° livro trata da diferença entre os homens e os climas.


Montesquieu afirma que o clima frio torna os homens mais fortes, fazendo com que eles tenham vantagens físicas e emocionais em relação aos homens nascidos e criados em clima quente, por essa razão, os primeiros se organizam, política e socialmente, de forma distinta dos segundos. 


O ar frio encolhe as extremidades das fibras exteriores do nosso corpo. Isso aumenta sua elasticidade e favorece o retorno do sangue das extremidades para o coração. Ele diminui o comprimento destas mesmas fibras. Logo, neste sentido, aumenta sua força. O ar quente, ao contrário, dilata as extremidades das fibras e as alonga; logo, diminui sua força e sua elasticidade. (MONTESQUIEU, 1973, p.239) 


Montesquieu defendia que as pessoas habituadas ao clima frio tinham maior conhecimento de sua força, coragem e de sua superioridade em relação aos demais. Isso fica mais claro quando ele destaca que o calor e o clima quente podem causar abatimentos no corpo, fazendo uma referência à relação entre os povos do norte e os povos do sul da Europa. 


O calor do clima pode ser tão excessivo que o corpo estará completamente sem forças. Então o abatimento passará para o próprio espírito; nenhuma curiosidade, nenhuma iniciativa nobre, nenhum sentimento generoso; as inclinações serão todas passivas; a preguiça será a felicidade; a maioria dos castigos serão menos difíceis de suportar do que a ação da alma, e a servidão menos insuportável do que a força de espírito necessária para conduzir a si mesmo. (MONTESQUIEU, 1973, p.242) 


Essa diferença será mais clara em obras posteriores ao período de Montesquieu, contudo, com o autor é possível ver um esforço para encontrar uma explicação racional, baseada em uma espécie de metodologia científica que busca uma explicação última a fim de sustentar a ideia de que os homens de clima quente e temperado, como os italianos e os franceses, por não suportarem as dificuldades impostas em seu espírito, devido a sua condição de clima quente e desfavorável à superação de obstáculos, a servidão se torna menos insuportável do que a emancipação, não há liberdade como nas nações do norte.


Porém o autor não foi o único a se apropriar da Idade Média e atribuir a ela uma relação com o contexto em que os intelectuais produziam. Montesquieu serve de matriz para diversos outros autores do mesmo período, entre eles Paul-Henri Mallet. Embora Mallet insira a questão religiosa em sua obra, ele a relaciona com um princípio lógico, demonstrando que os deuses dos povos do norte, auxiliariam durante a guerra, contribuindo para cristalizar a crença de que isso os fazia lutar com coragem: 


Muitos povos antigos, os Citas e os Alemães, por exemplo, atribuem ao Deus supremo uma infestação particular durante a guerra. Todos eles assumem, de acordo com seu próprio caráter, que Ele gostava de brilhar nas batalhas pela força e indiferença, e pelo fingidor de vingança e pelos inimigos por carnificina e desfolhamento. (MALLET, 1758, p.54).


Além disso, o autor faz referência à guerra e seu exercício de prazer e honra entre esses povos, seguindo a ideia de Montesquieu sobre a rigorosidade do clima no norte e a paixão desse povo pela guerra “Os povos dos países quentes são tímidos como os idosos; os dos países frios são corajosos e os jovens” (MONTESQUIEU, 1960, p.224).


Finalizando essa discussão a respeito dos autores do século XVIII, Anne-Louise Germaine de Staël-Holstein, autora romântica do período iluminista que incorporou valores desse contexto, escreveu a partir do início do século XIX com posições políticas definidas, mesmo já tendo produzido algumas obras no período anterior. Embora exista um distanciamento, em relação a Montesquieu e Mallet, a autora incorporou alguns dos preceitos do primeiro, sendo destacados em uma obra escrita em 1800, pouco antes de ser banida de Paris. 


Neste livro intitulado De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales (1799), a autora faz um ensaio sobre a literatura, discutindo a produção europeia realizada durante a época de Luis XIV, definindo duas espécies de gêneros literários, quanto ao continente. O importante a ser destacado está na questão climática, tendo possivelmente os teóricos franceses com a grande inspiração de Montesquieu, no período do século XVIII, a autora estabeleceu a diferença entre a literatura do Midi e do Nord, de acordo com preceitos climáticos,


Primeiro, as imagens que se apropria no clima do Sul diferem inteiramente daquelas que o clima do Norte inspira, e, segundo, a imaginação religiosa dos judeus não tem a menor relação com a que ainda anima os descendentes. Poetas escandinavos e bardos escoceses (STAEL, 1799, p.162)


A seguir, após definir a referência climática que relaciona as inspirações literárias distintas para Mme Staël, a autora expõe a forma como as obras literárias dos povos de origem germânica deveriam ser definidas, entendendo que a sua raiz comum não pertence a Antiguidade Clássica, em especial quando a ela insiste em iniciar a sua fala com gregos e latinos, encerrando com franceses. 


Os gregos, latinos, italianos, espanhóis e franceses do século de Luís XIV pertencem ao tipo de literatura que chamarei de literatura do sul, obras inglesas, obras alemãs e alguns escritos dos dinamarqueses e suecos devem ser classificadas na literatura do norte. (STAEL, 1799, p.163)


Nota-se que existe um fio condutor entre os autores discutidos, embora haja um relativo distanciamento temporal, os citados possuem como base o pensamento iluminista, o uso da razão e da filosofia. 


Da segunda metade do século XVIII, essa concepção se altera. Por isso, acredito ser pertinente destacar dois autores e suas contribuições para a articulação da proposta de apropriação do passado medieval e o seu uso para atacar as instituições que o Iluminismo visava derrubar. Assim, a seleção se deu seguindo o pressuposto da relevância no alcance de suas obras. Entre os autores analisados, Voltaire e Louis de Jaucourt, que faz uso das ideias do primeiro em sua contribuição à Encyclopédie.


Voltaire apresentou uma visão bem diferente do que os seus antecessores, para o autor de Essai sur les moeurs et l'esprit des nations (1963), em um pequeno texto sobre os normandos no século IX, o autor faz duras críticas à forma como os nórdicos se comportavam e entraram em contato com os francos. Para ele, não passavam de bárbaros e piratas, que vinham pelo mar apenas para pilhar e destruir, sendo responsáveis também, pelo fim da civilização romana, nos séculos III e IV, 


Tudo sendo dividido, tudo era infeliz e fraco. Essa confusão abriu caminho para o povo da Escandinávia e os habitantes das margens do mar Báltico. Esses selvagens, numerosos demais, tendo apenas que cultivar em terras ingratas, carentes de manufaturas e privados das artes, procuravam apenas se espalhar para longe de sua terra natal. Eles precisavam de bandidos e pirataria, como a carnificina de animais ferozes. Na Alemanha, eram chamados de normandos, homens do norte, sem distinção, como ainda se diz em geral os corsários de Bárbaros. A partir do século IV, eles se misturaram com as ondas de outros bárbaros, que levaram a desolação à Roma e à África. (VOLTAIRE, 1963, p.72)


Neste mesmo texto, Voltaire trabalhou com a ideia de que os povos normandos vinham pelo mar e pilhavam pequenas vilas, posteriormente, passaram a incluir as grandes cidades francas em sua rota de assaltos. 


Em um estudo relativamente recente de Flávia Amaral (AMARAL, 2012, p.67) sobre a construção da imagem de Joana D’arc no contexto intelectual francês, a autora demonstra que Voltaire trata Joana D’Arc com muita ironia e sarcasmo. É interessante notar a forma como ele demonstra a relação dos reis com os constantes ataques normandos, pela maneira dura como suas críticas são feitas. Segundo Voltaire, “O infeliz rei Carlos, o Calvo, entrincheirado em Saint-Denis, com poucas tropas, em vez de se opor a esses bárbaros, comprou o retiro que eles se dignaram a fazer de quatorze mil marcos de prata.” (VOLTAIRE, 1963, p.73). Isso demonstra como Voltaire expressava sua indignação com a fraqueza dos reis em meio à situação adversa.


No parágrafo seguinte, ele faz duras críticas à Igreja, demonstrando como forjara testemunhos para consolar a sua vergonhosa perda, 


Nós ficamos indignados quando lemos em nossos autores que vários desses bárbaros foram punidos com morte súbita por terem saqueado a igreja de Saint-Germain-des-Prés. Nem o povo nem seus santos se defenderam; mas os vencidos sempre se dão a vergonhosa consolação de supor milagres realizados contra seus vencedores. (VOLTAIRE, 1963, p.73)


Mais adiante, o autor continua a criticar os reis, demonstrando que o pagamento realizado pelos netos de Carlos Magno só serviam para armar ainda mais as incursões e envergonhar o legado do imperador, 


Carlos, o Calvo, comprando assim a paz, apenas deu a esses piratas, novas formas de travar guerra e novos meios de apoio a ela. Os normandos usaram esse dinheiro para assediar Bordeaux, que eles saquearam. Para o auge da humilhação e horror, um descendente de Carlos Magno. (VOLTAIRE, 1963, p.73)


Voltaire usaria esse pequeno texto e constituiria um novo paradigma a respeito dos povos nórdicos. Em sua visão, eles não estavam associados a um brilhantismo climático que os tornavam tão únicos, nem a um espírito livre, como os autores do início do século XVIII tentaram afirmar, mas sim como bárbaros e invasores que encontraram na fraca instituição feudal, sustentada por reis sem força e uma igreja que se conformava em criar histórias para superar suas derrotas. Isso demonstra uma diferente maneira de conceber os povos do setentrião e serviu de base para a Encyclopédie, em especial nos dois artigos sobre os normandos, de Louis Jaucourt.


A Encyclopédie, coordenada por D’Alambert e Diderot entre os anos de 1751 e 1780, pretendiam usar a base iluminista no objetivo de construir um cidadão esclarecido. Todo o conhecimento acumulado pelos cientistas dos séculos XVII e XVIII foi considerado enquanto saber válido, positivado, e, nesse sentido, fazia-se necessário estabelecer as bases para um conhecimento filosófico em que a razão pudesse substituir a fé como norteadora dos ideais.


A enciclopédia teve grande relevância especialmente após 1765, quando Denis Direrot e Louis Jaucourt concluíram a sua edição com mais de 70 mil verbetes. Isso tornou o projeto muito influente, especialmente após a Revolução, sendo vista por Robert Darnton como a obra suprema do Iluminismo "a Enciclopédia passou a ser reconhecida por amigos e inimigos, como a síntese de um grandioso movimento intelectual." (DARNTON, 1996, p.25). Desta forma, vários autores ajudaram a escrever a Encyclopédie e muitos outros a utilizaram como base para sua produção intelectual, entre eles Kant, Hegel e Karl Marx. Não é possível negar que a Enciclopédia tinha um grande alcance e que o que estava escrito nela servia de base para que todos os cidadãos, na busca pelo esclarecimento, tivessem alguma referência. 


Louis Jaucourt contribui com dois artigos sobre os normandos, em um deles o autor descreve as condições geográficas da região conhecida como Normandia, fazendo um levantamento de dados sobre as instituições presentes e a origem da região, no outro texto, é possível notar a referência a Voltaire, tendo em vista que a segunda parte tinha um viés histórico. Isso se torna perceptível ao longo de todo artigo. Logo no início do texto escreve o autor “os povos da Escandinávia e do Mar Báltico, que devastaram a França e a Inglaterra durante o século IX. Eram chamados normandos, homens do norte, sem distinção, como ainda dizemos em geral os corsários de bárbaros.” (JAUCOURT, 1751, p.228)


Podemos perceber que o autor estabelece uma visão muito próxima à de Voltaire, conforme analisado anteriormente, e é inegável que tanto o primeiro quanto Jaucourt possuíram um grande alcance não somente na França como também em toda a Europa. Seu alcance é tão notável que importantes autores do século XIX como Augustin Thierry, não problematizaram quem eram de fato esses homens vindos do norte e simplesmente reproduziram essa construção do conceito conforme constituído na enciclopédia.


Conclusão

Portanto, é importante notar que embora o século XVIII possa ser visto como um conjunto homogêneo em relação à produção historiográfica existe uma grande diferença quanto à tentativa de sistematizar a compreensão dos povos do norte, em especial, no âmbito francês, que possuía, em sua primeira metade, uma visão baseada na condição natural e associada às repúblicas antigas, incorporadas por sua noção de liberdade, que na visão de Montesquieu, associava-se às repúblicas gregas. Tal visão foi alterada na segunda metade do século: devido à efervescência da Revolução, as críticas se ampliaram quanto às instituições e tanto Igreja quanto monarquia passam a ser ainda mais criticadas, e os normandos se tornaram um meio de demonstrar a fragilidade delas, devido à reação das instituições quanto às suas incursões.


Referências Bibliográficas

AMARAL, A.F. História, revolução e ressignificação: Joana d’Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX. São Paulo, 2012.

DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio. São Paulo, Companhia das Letras. 1996.

JAUCOURT, in Diderot, Denis & d’Alembert, Jean. Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Metiers. Paris :Briasson, David, Lebreton, Durand, 1751. Edição Fac-Simile de Pergamon Press.

MALLET. P.H. Introduction à l’Histoire du Dannemarc, où l’on traite de la religion, des Loix et des moeurs et des Usages des anciens Danois, Copenhague, 1758. 

MONTESQUIEU. Cartas persas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960.

MONTESQUIEU. Do Espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

MONTESQUIEU. Lettres persanes. Org. Philip Stewart. Paris: Classiques Garnier poche, 2013.

STAEL-Holteins Madame; De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales. De l'imprimerie de Crepelet: Paris, 1799.

THIERRY, A. Considérations sur l'histoire de France. 2v. Paris: Garnier, 1833.

VOLTAIRE, Essai sur les moeurs et l’esprit des nations. Edited by Rene Pomeau.  Paris: Garnier, 1963.

Comentários

  1. Bom dia, Renan.

    Achei bastante interessante o texto. Gostaria de saber se ainda há certa reminiscência destas ideias iluministas tanto na produção historiográfica moderna quanto nos livros didáticos sobre as incursões normandas, perpetuando os preconceitos que você apontou e formando aquilo que Mullet e Giacomoni chamam de "dispositivo de medievalidade". No caso do material pedagógico, como o professor pode ajudar a desmistificar estereótipos sobre o tema para uma turma de ensino fundamental/médio?

    Abraço,
    Leandro César S. Neves

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    1. Bom dia, agradeço pelo comentário.
      Acredito que a produção do material didático, ainda é muito permeado por um referencial francófono o que ainda reproduz determinados preconceitos e visões datadas sobre determinados assuntos. Eu não consigo ver uma distinção tão grande entre a produção do saber iluminista e a base dos materiais didáticos produzidos no Brasil, no último século. Algumas visões como a formação da sociedade feudal, um dos temas mais estudados nas escolas brasileiras, apresenta, em seu modelo clássico, reminiscências iluministas, especialmente quando se refere a formação da sociedade feudal tendo como ponto de partida o encontro entre diferentes culturas, e a segunda onda de incursões (normandos, húngaros e muçulmanos). Esse modelo é reproduzido até hoje e confere legitimidade a uma narrativa nacionalista francófona, travestida de uma história problema.
      Quanto ao dispositivo de medievalidade, o livro didático é a principal ferramenta de ensino no Brasil. Algumas discussões atuais, especialmente a respeito da produção de uma base nacional, a BNCC, levam em consideração, muito mais a avaliação e o resultado e a noção de identidade está muito mais presente, esvaziando-se assim os conteúdos relativos a Idade Média, que como agravante, reproduz versões tradicionais da historiografia francesa e não permite a crítica a diferentes problemas. Assim, é muito comum vermos professores ensinando que os portugueses foram os pioneiros na navegação atlântica, e os espanhóis a chegarem na América. Diante disso, penso que fazer uso de narrativas relativas a sociedades que normalmente recebem pouca atenção nos livros didáticos, para ajudar a questionar e criticar os modelos sociais que vemos, pode ser de grande ajuda para pensar também a sociedade brasileira, especialmente na medida em que questionamos determinadas verdades estabelecidas, como o de que a Europa foi totalmente feudal e a de que o feudalismo é um modelo clássico, tripartido e dominado pela Igreja, pronto e acabado. Isso seria de grande ajuda para despertar não só a crítica, mas para evitar ressignificações equivocadas do passado medieval, como templários e movimentos neofascistas.

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  2. Boa noite, muito bem elaborado esse texto parabéns

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    1. Boa noite, muito obrigado. Espero que tenha ajudado, de alguma forma.

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  3. Olá Renan, tudo bem? Gostaria de primeiramente te parabenizar pelo texto. Eu não sei se está na alçada da tua pesquisa (pelo tema, creio que não) mas no uso que você fez do Montesquieu e do Voltaire para descrever a abordagem iluminista sobre os normandos eu me lembrei da que David Hume fez para com os ingleses em "História da Inglaterra". De fato, ambos os filósofos produziram no século XVIII. Hume via na influência da Igreja como algo decadente, e a sociedade medieval inglesa como algo quase barbaresco. Você vê paralelos que podemos traçar com os filósofos franceses?
    Abraços,

    Rodrigo Fernandes Vicente

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    1. Desculpe-me pela demora para responder. Eu não usei o computador hoje e só vi agora. Então, a respeito do recorte: Sim, eu fiz uso dos dois autores como referências para pensar o período iluminista, mas com foco maior no que falavam a respeito de outros povos e como relacionavam esses grupos para questionar aquilo que era anseio dos autores, no momento. Como o recorte foi feito em relação aos autores francófonos, eu poderia cometer equívocos ao afirmar que existia sim um paralelo entre esses autores. O que eu acredito é que cada produção intelectual do período, baseia-se na necessidade de questionar ou legitimar um determinado movimento político. O próprio contexto do século XVIII francês é multifacetado, como podemos perceber entre dois autores que são ícones de um movimento e seus discursos são bem diferentes em intensidade, para criticar o Absolutismo Francês. Entretanto, acredito que existia uma comunicação sim, não diretamente, mas pela circularidade textual, que o Stock chama de Comunidades Textuais.

      Muito obrigado pela pergunta, espero ter conseguido responder.

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  4. Olá Renan, tudo ok? Parabéns pelo texto.

    Eu esqueci de falar na defesa, mas lembrei durante a leitura: valeria a pena consultar associações de antiquários e de história da Normandia para verificar se/como eles constituíram uma história regional - e se ela diverge (ou não) da narrativa oficial/central parisiense. Eu fiz isso no doutorado e deu super certo (no caso da Ilha de Man, é claro). Eis algumas sugestões: a Fédération des Sociétés Historiques et Archéologiques de Normandie (http://www.fshan.fr/) e Société des Antiquaires de Normandie (antiquaires-de-normandie.org).

    Abraços,

    Renan Birro

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    Respostas
    1. Obrigado pelas sugestões, professor. Eu conheço muito bem a sua tese, acredito que será de grande ajuda para o projeto que pretendo apresentar, no final deste ano.

      Obrigado

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  5. Boa tarde Renan!
    Me chamo Thiago Natário e sou mestrando em história pela UFPR, estudando a etnogênese de uma distinta identidade normanda na Gesta Normannorum de Dudo de Saint-Quentin (995 - 1015/1026). Analiso justamente a transformação do conceito genérico normanni, que designava todos os homens do norte, em uma identidade étnica específica para o condado/ducado da Normandia nos séculos X e XI, e foi justamente isto que me chamou a atenção a seu texto.
    Por isso também, me pergunto: será que Montesquieu e Voltaire não estão a falar de coisas distintas? Tenho a impressão que Montesquieu e outros autores se referem a uma denominação genérica de norte que inclui a própria Gália, como você próprio explicitou no texto, enquanto Voltaire refere-se de forma bastante específica aos normandos como uma unidade política que estabeleceu-se no noroeste da Francia carolíngia por conta da "fragilidade" dos reis francos, na visão dele. Será que não caberia, então, tratar o primeiro caso por uma denominação geográfica mais genérica (como por exemplo "nortenhos") e reservar "normandos" para os contextos em que há referência clara ao ducado da Normandia, entre os séculos X e XIII, e sua população? Afinal, há grande diferença entre os contextos de invasões escandinavas dos séculos VIII, IX e X e o fenômeno bastante localizado e específico da construção da Normandia e tomada do reino da Inglaterra em 1066.

    Agradeço desde já e peço desculpas se a confusão acaso tenha partido de algum tipo de má interpretação da minha parte.

    Abraços!

    Thiago Natário

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    1. Boa noite, Thiago. Obrigado pela leitura e pelas considerações. Acredito, assim como você propôs, que os momentos distintos e as narrativas dos autores, tinham uma objetividade diferente. Montesquieu estava mais preocupado com a discussão de regimes políticos e a forma lógica pela qual esses regimes se constituem. Já o Voltaire, tinha como preocupação maior, pelo menos na leitura que fiz de seus textos, criticar o Absolutismo. O fervor com o qual o autor expõe suas ideias, as metáforas utilizadas nas cartas persas, todos tinham como objetivo uma crítica direcionada. O que posso afirmar a respeito disso é que o objetivo desses autores não era de realizar um exame crítico dos normandos como um povo, ou como povos, tanto que a discussão de Voltaire vai ser o trecho destinado a categorizar esse grupo, na Enciclopédia.

      A primeira vez que encontro certa tentativa de conceituar o tema, foi no século XIX com Augustin Thierry, assim mesmo o objetivo não é a problematização em si, mas um esforço para definir o normando.

      Quanto ao estabelecimento do conceito, algumas fontes merovíngias já faziam menção a esses povos, como o Decem Libri Historiarum, não os descrevendo como normandos, mas já havia relações sociais entre francos e escandinavos. Eu encontro e defendo a construção do conceito presente no século VII-VIII, especialmente em fontes reais que passam a descrever os povos do norte como Dani, transformando-se posteriormente em nortmanni.

      Essa mudança fica mais clara nos Anais de São Berto (Annales Bertiniani) em que a palavra Nortmanni aparece 116 vezes, enquanto dani, apenas 36. Além disso, o nortmanni passa a se correlacionar com outros adjetivos, como incendiários, violentos, bárbaros, pagãos. O que confere, ao meu ver, um caráter étnico e de alteridade, para esses povos do norte. Então o século IX, em que as incursões se notam com maior frequência, ao meu ver, foram responsáveis por cristalizar o conceito e atribuir a ele um significado étnico e geográfico. O Régis Boyer tem um livro em que trata justamente dessa narrativa, e os intelectuais do século XVIII, XIX e XX em quase nada alteram o que foi constituído no século IX.

      Por fim, acho que seria válido, para o seu trabalho, dar uma olhada na forma como a Vita Karoli Magni, trata dos normandos nos capítulos 12, 14, 17 e 32, nota-se que existe certo esforço por associar esses povos a algumas figuras como Godfrid e nos Annales Regni Francorum, além, claro do Annales Bertiniani, que ao meu ver, é uma das fontes que ajuda a cristalizar o conceito normando sob um ponto de vista étnico, de referência franca.

      Mais uma vez, agradeço pela leitura e espero ter respondido.

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